Convido-vos a ler o artigo que escrevi originalmente para o site www.aquiparati.pt, um projeto dos alunos de 12º ano de Economia sobre a saúde física e mental dos adolescentes. Uma iniciativa de apoio interpares muito interessante!
Para abordarmos este tema, que tal começarmos com uma música?
Onde Estou Eu (link YouTube)
Mesmo que o sinta correr
Não oiço o rio cantar
O que foi que aconteceu
Onde estou eu
Pode a magia trazer
Meu barco a salvo do mar
Como foi que se perdeu
Sem me levar
O céu abriu mesmo assim
Pôs-se uma bela manhã
Porque foi que em mim choveu
Onde estou eu
(Manel Cruz, Onde estou eu – álbum Vida Nova)
A adolescência é o salto até à idade adulta. E que salto este! Passar da infância para um estado de maturidade, responsabilidade e independência é trabalho árduo, e um desafio que tem de ser vivido.
Erikson falou dos estádios de desenvolvimento psicossocial, caracterizando entre os 12 e os 18 anos, o conflito Identidade Vs Confusão/difusão de papéis: Uma fase em que o adolescente define a sua identidade pessoal e tenta integrar de forma coerente vários papéis de vida (filho, amigo, aluno, namorado…). Quem Sou? O que serei? – São perguntas para as quais procura resposta.
Ao focar o desenvolvimento cognitivo, Jean Piaget, por seu lado, associa a fase da adolescência ao Estádio de Operações formais: o adolescente dá um grande salto do pensamento concreto para o pensamento lógico-abstrato. Aumenta a sua capacidade de resolução de problemas, mas torna-se também muito mais elaborado o seu entendimento do mundo. Esta nova capacidade traz também novas questões existenciais que têm de ser abordadas e integradas na identidade em construção.
Ao nível do desenvolvimento moral, segundo Kohlberg, o adolescente atinge o terceiro estádio, denominado Pós convencional. O adolescente deixa de ver as regras sociais como “mandamentos rígidos” do certo e do errado, e passa a encará-las como um conjunto de princípios orientadores, recomendáveis mas mais flexíveis. Pode ainda atingir um último estádio, em que se rege por princípios éticos universais de justiça e dignidade.
… E poderíamos falar de muitas mais mudanças. Por isso, tal como refere a música do Manel Cruz, é normal o adolescente sentir-se num turbilhão e perguntar:
“Onde estou eu?”
A pandemia veio aumentar este desafio da adolescência, e é fácil perceber porquê. Começa pelo isolamento: Afastar os adolescentes do seu grupo de pares e das experiências com amigos e colegas é um golpe duro. O convívio, os grupos de amigos e as constantes saídas e encontros não são simples passatempos, mas sim uma necessidade saudável dos adolescentes. Permitem…
- Acumular experiências: Ir a diferentes sítios, experimentar atividades, conhecer pessoas novas, ser ator e espetador de uma maior diversidade de situações;
- Desenvolver competências sociais: Lidar com os namoros, as zangas, as desilusões, os conflitos… aprender a avaliar e a gerir as características dos outros;
- “Treinar” a autonomia: Estar por sua conta por períodos maiores, mas na segurança da companhia dos amigos;
- Aumentar a autoestima e o sentido de pertença: Sentir-se aceite, identificado com outras pessoas da mesma faixa etária, descobrir grupos de acolhimento e de afeto fora da esfera familiar.
Todas estas vivências foram muito limitadas pela pandemia e pelas regras de isolamento impostas. Os adolescentes viraram-se cada vez mais para o telemóvel, para o contacto remoto, mas essa solução é só um penso rápido para quem anseia o contacto real, o sair de casa e afastar-se (temporária e saudavelmente) dos pais.
Por outro lado, toda a dinâmica de aprendizagem e integração escolar ficou de pernas para o ar. Professores à distância, internet a falhar, improvisações constantes, demasiado trabalho autónomo e muitas dúvidas por tirar. E solidão atrás de cada computador. A escola em regime presencial não é substituível por qualquer outro regime. Não só na eficácia e eficiência do ensino, como de todo o contexto, interações e rotinas que envolve. O espaço escola é um pequeno mundo insubstituível para a criança e o adolescente, e também isso lhes foi retirado durante o confinamento e durante os períodos de isolamento que quase todos tiveram de cumprir ao longo deste processo.
Já o contexto de guerra na Europa acendeu nos adolescentes preocupações que lhes eram ainda distantes: questões morais, como o sentimento de injustiça pelo sofrimento provocado à população civil, ou a violação dos direitos humanos; os vários riscos (económicos, sociais, ambientais, humanos) que podem afetar o seu futuro; a exposição constante a notícias e imagens dos danos humanos e materiais da guerra, e respetiva integração cognitiva e emocional; a complexidade das questões políticas e geográficas, tão difíceis de compreender… Tudo questões complicadas de gerir para um adulto – e mais ainda para um adolescente que está a tentar conhecer o mundo em que vive e situar-se nele.
Então, que podemos concluir?
Que o confinamento provocado pela pandemia provocou um período de privação e escassez no processo de desenvolvimento dos adolescentes. E que a guerra trouxe novas preocupações e receios. O normal processo da adolescência já é complexo e desafiante! O contexto atual de pandemia e, mais recentemente, de guerra, vieram aumentar o seu grau de dificuldade. Felizmente, a fantástica adaptabilidade do ser humano permitiu à maioria dos adolescentes usar da sua criatividade, resiliência e competências de resolução de problemas para ultrapassar este período difícil.
“…o céu abriu mesmo assim/pôs-se uma bela manhã…”
Ainda assim, por diversos motivos, alguns adolescentes experienciaram maiores dificuldades do que outros. Muitos começaram a exibir alterações comportamentais e emocionais que suscitam preocupação e merecem uma avaliação adequada.
“…porque foi que em mim choveu / onde estou eu”
A que sinais devemos estar alerta?
- Tristeza prolongada, dominante na maioria dos momentos do dia a dia. Muitas vezes identificam-se episódios frequentes de choro, mas nem sempre. Por vezes, podemos notar apenas apatia;
- Perda de vontade em participar nos seus hobbies e atividades habituais, que antes lhe davam mais prazer;
- Redução do contacto com os colegas e familiares, preferindo ficar sozinho/a ou apresentando diversas “desculpas” para não sair de casa;
- Aumento das situações de ansiedade (coração acelerado, sudação excessiva, tremores, sensação de falta de ar, sensação de desmaio…)
- Alteração dos conteúdos das conversas ou publicados nas redes sociais, com referências mais frequentes à morte, depressão, tristeza;
- Relatos de dificuldades acentuadas em dormir (insónia) ou demasiado tempo a dormir por dia (hipersónia);
- Comportamentos auto-lesivos ou auto-destrutivos, como cortes na pele, consumo excessivo de álcool ou drogas, ou ideias de suicídio;
“Mesmo que o sinta correr /Não oiço o rio cantar”
Para simplificarmos: Se notas que um dos teus amigos ou colegas voltou mais triste ou ansioso, ou se notas que o seu comportamento se alterou bastante e essas alterações não desaparecem no espaço de um ou dois dias, então poderá precisar de ajuda.
Se te identificas com alguns dos sinais enumerados, podes ser tu a precisar de ajuda, o que vai fazer toda a diferença para ultrapassares este momento difícil!
Como podem os colegas ajudar um/a amigo/a que não está bem?
- Tentar, num momento mais calmo e resguardado, abordar a vossa preocupação com o vosso/a amigo/a, e perceber se ele/a está preparado para falar com alguém sobre isso ou pedir ajuda. É possível que ele/a não queira abordar o assunto, e nesse caso não vale a pena insistir demasiado. Permaneçam atentos à evolução dos seus comportamentos e das suas emoções.
- Partilhar a preocupação com um professor ou psicólogo escolar. Os amigos são uma excelente ajuda, mas quando surgem sintomas mais problemáticos ao nível da saúde mental, o seu suporte não é suficiente para ultrapassar as dificuldades. É preciso pedir aos adultos responsáveis que ajudem a tratar a situação.
- Continuar a incentivar o/a amigo/a para os habituais encontros e convívios, sem pressionar demasiado, mas fazendo-o/a sentir que continuam a querer a sua presença e a sentir a sua falta;
- Manter contactos regulares, presencialmente ou por telemóvel/computador. O objetivo não é estar sempre a referir as suas alterações de comportamento, mas sim “puxar conversa”, nem que sejam temas banais do dia a dia. O importante é manter a ligação e o contacto;
- Ser compreensivo e tentar ser empático com as dificuldades que está a sentir. Pode ser frustrante estar a incentivar, a ligar, a tentar animar – e receber sempre rejeições. É desapontante estarmos a dar o nosso melhor para ajudar e não ter a resposta que queremos! Não descarregues essa frustração no/na teu/tua amigo/a, porque pode agravar o seu mal-estar. Se ele não retoma as suas atividades e convívios normais, é porque o seu estado emocional não o permite. Tenta respeitar o tempo que ele precisa para retomar o seu “eu”.
- Caso se identifiquem comportamentos graves, como verbalizações sobre suicídio ou outros atos autodestrutivos, ou algum indicador significativo de risco, deve-se procurar imediatamente um adulto para relatar a situação e pedir ajuda. É o que deve ser feito mesmo que ele/ela peça para não contar nada a ninguém: a sua segurança tem de estar em primeiro lugar! Quando percebemos que há o risco de algo grave acontecer, é preciso agir (mesmo correndo o risco de ele/ela ficar chateado/a; isso poderá ser falado e resolvido a seu tempo).
Todos os sintomas referidos são tratáveis e podem ter um prognóstico muito positivo. O importante é que o adolescente consiga aceder à ajuda médica e/ou psicológica necessária, para então fazer o devido processo de recuperação.
“Pode a magia trazer / Meu barco a salvo do mar”
(… e chegar a seu porto, com segurança e esperança no amanhã)
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